A certeza de que o exame de HIV daria positivo fez com que Lucrécia entrasse em desespero ainda antes de ter coragem de fazer o teste. O ano era 2014 e ela começou a ter uma febre alta, que não passava com nenhum remédio. Tinha também muita diarreia, náuseas, perda de peso excessiva. “Eu sentia muita fome, comia, comia, comia, mas emagrecia”, lembra ela. “Sentia muita fraqueza.”
“Fiz uma retrospectiva mental da minha vida, de tudo o que tinha feito, das práticas sexuais e fui para a internet para olhar quais eram os sinais e sintomas da AIDS. Vi que estava tudo batendo com o que eu estava sentindo e entrei em desespero”, conta Lucrécia. “Eu sabia o que tinha feito, sexualmente falando, e sem preservativo. Já sabia que ia dar positivo. Mas quando recebi o resultado, para mim aquilo era um ponto final.”
Naquela época, Lucrécia cursava o sexto período de geografia, em Palmas, na Universidade Federal do Tocantins. O diagnóstico veio como uma bomba em sua vida. “Para mim, foi como se tudo tivesse acabado”, diz ela, que, na ocasião, trancou a faculdade e voltou para sua cidade, no interior do estado. Lucrécia lembra que teve várias intercorrências médicas.
“Mesmo tomando o remédio, a minha imunidade baixou muito, meu organismo não aceitava a medicação”, afirma ela. “Meu psicológico também estava muito ruim, não conseguia levantar, tomar banho, me arrumar. A vida para mim tinha acabado, estava tudo escuro.”
Mas este foi só o começo de uma trajetória cheia de superações…
As doenças oportunistas culminaram com uma neurotoxoplasmose, uma infecção no sistema nervoso central, que a deixou em coma e a fez perder o movimento das pernas. “Voltei para casa ainda com problemas para falar, andar, tive que fazer fisioterapia, sessão com fono; era alimentada por sonda. Minha mãe cuidou de mim até que me recuperasse totalmente. Só em junho de 2015 consegui superar tudo isso. Aceitei o diagnóstico, o que era mais difícil, e voltei para a faculdade.”
Ela acabou se formando no ano seguinte e emendou uma pós-graduação em psicopedagogia. “Em 2017 me assumi mulher trans, estou há um ano e sete meses em transição de gênero”, conta ela. Hoje, ela trabalha na Associação de Pessoas Trans do Tocantins, que encaminha e dá apoio a pessoas em transição de gênero, e também na militância trans e de HIV, viajando por todo o Brasil. Mas nem sempre foi assim. “Minha vida nunca foi fácil.”
Antes da transição de gênero, Lucrécia viva como menino gay. “Eu gostava de menino, minha família sabia disso, mas eu me vestia como menino, seguia um padrão para evitar o preconceito”, conta. “Mas não era bacana porque não era eu, sabe? Era como viver com uma máscara, uma fachada. Só depois de me formar, aos 24 anos, entendi quem eu era.”
É muita coisa para uma só pessoa. E tão nova. “É muita coisa mesmo, eu sei”, diz Lucrécia. “É uma sequência, né? Militância, viver com HIV, ser trans, vivenciar os preconceitos, a discriminação, a transfobia. Praticamente toda a minha vida eu resumo com uma palavra, que é superação. Uma vida de superação a cada momento. Por isso, meu lema é resistência, resistência e resistência.”
De todos os preconceitos que já vivenciou e sentiu na pele, Lucrécia não precisa nem pensar para dizer qual é o pior. Responde na lata: “Ah, é o machismo, né? Tenho muito ranço de machismo, acho podre, nojento. Hoje eu vivo o outro lado, eu sinto na pele o que é o machismo. Hoje eu sei o que é estar numa festa, um cara chegar e querer ter acesso a um corpo que não é dele, te chamar de gostosa, te chamar de cachorra, dizer que quer transar com você e quando você diz não, ainda tem que ouvir ‘mas você é lésbica ou tá pagando de santa?’ Sem dúvida, o maior preconceito que eu enfrento hoje na sociedade é o machismo.”
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