Ruggery é gato. Bem gato. Moreno, alto, atlético. O rosto bonito é adornado por uns óculos estilosos, um corte de cabelo da moda e uma barba cuidadosamente aparada. No antebraço direito dá para entrever a tatuagem de um avião – uma de suas grandes paixões.
Além de ativista, o jovem de 28 anos é militar reformado pela Aeronáutica, formado em Gestão Pública e, atualmente, cursa a faculdade de Serviço Social. Seu sonho é se tornar professor universitário. Enquanto isso não acontece, ele presta trabalho voluntário para diversas ONGs e gosta de praticar esportes. Já correu três vezes a Meia Maratona do Rio e duas vezes a São Silvestre, em São Paulo.
Ruggery se identifica como a nova cara da epidemia de HIV.
“Eu disse em certa vez em uma entrevista que eu era ‘a cara da AIDS’. A frase surgiu desse estigma que ronda a doença: muita gente ainda acha que quem tem o vírus é muito magro, tem cara de doente, é necessariamente gay”, explica o estudante. “Eu usei a frase para dizer que não é assim, não tem isso, não existe ‘cara da AIDS’. O HIV não escolhe classe social, raça, sexo. Eu sou uma pessoa como outra qualquer e eu também sou a cara dessa epidemia.” Mas nem sempre foi tão simples assim falar de sua condição…
Ruggery descobriu que era soropositivo em 2010. Ele teve HPV e a infecção doía, sangrava, cheirava mal. Mas ele escondeu o problema durante quatro meses por vergonha. “Eu estava na Aeronáutica nesta época, tinha medo do tradicionalismo, da cultura do quartel; da minha própria cultura nordestina tradicional”, lembra ele. “Então fiquei escondendo.”
Um dia, no entanto, ele deu entrada no hospital da Aeronáutica. A médica de plantão percebeu que algo estava errado com o soldado. Depois de examiná-lo, pediu uma série de exames, entre eles, o de HIV.
“Na época, eu achava que o HIV tinha cara e quando soube que eu era soropositivo, meu mundo caiu”, conta o estudante. “Achei que eu ia morrer. Aliás, essa foi a primeira pergunta que eu fiz ao médico: quando eu vou morrer?”
Quando soube que não estava condenado à morte, Ruggery fez ainda mais uma pergunta ao médico: “Eu vou poder ter filhos?” A resposta não foi das mais politicamente corretas, digamos, mas, momentaneamente, trouxe alívio para o jovem. “Sim”, disse o médico. “Mas você vai querer transar com mulher?”
“Em geral, o acolhimento na Aeronáutica foi muito fraco”, resume o jovem. “O quartel só ajudou a atrapalhar o meu entendimento em relação ao diagnóstico.” Por causa dos protocolos médicos da época para o início do tratamento contra o HIV, Ruggery só começou a tomar os medicamentos do coquetel em 2012. “Como minha imunidade estava muito baixa, eu tive pneumonia e herpes zoster”, conta ele. “Quando comecei a tomar os remédios, passava muito mal. Não comia, tinha diarreia, vomitava, acabei perdendo muito peso.”
Ele passou por três tentativas de combinação de medicamentos até conhecer a médica Márcia Rachid, uma das maiores especialistas do Brasil no tratamento de HIV/AIDS. Ela se ofereceu para acompanhá-lo gratuitamente em seu consultório particular. [a] “Desde o dia em que ela trocou a minha medicação e eu passei a ter um tratamento humanizado, minha vida mudou completamente”.
Ruggery Gonzaga de Melo nasceu em Campina Grande, mas passou boa parte a infância e da adolescência em um município próximo, de apenas 6 mil habitantes.
“Lá, todo mundo só falava de AIDS como a doença dos gays; diziam que a gente não podia sentar no lugar onde eles sentavam ou pegaríamos a doença”, conta. “Mas eu tive um tio que morreu de AIDS, hoje vejo isso. Ele definhou, na verdade, porque acho que não quis se tratar, tinha vergonha, acabou morrendo. Ele era casado, mas era caminhoneiro, vivia na estrada.”
Como sempre foi apaixonado por aviões, a ideia de entrar para a Aeronáutica veio como algo natural. “Comecei em 2 de março de 2009”, conta o jovem. “Foi como um sonho, achei que aquilo nunca poderia acontecer comigo. Eu era o orgulho da minha família, imagina, eu vinha de uma cidade de 6 mil habitantes. Aquilo era algo muito especial”.
Mas a lua de mel durou pouco. Logo depois que Ruggery começou a se tratar, começou a sentir na pele o preconceito.
“De repente, eu me vi num ambiente que me segregava, me impedia de seguir carreira”, afirma. “Depois de quatro anos, resolveram me mandar embora. Não fui reformado, apenas mandado embora. Foi um sonho destruído.”
Em março de 2013, Ruggery decidiu entrar com uma ação na Justiça pedindo a sua reintegração à força, o que acabou acontecendo cinco meses depois. “Logo as pessoas começaram a me acusar de ‘tentar viver às custas do sistema’, de ‘sugar’ o governo. ‘Quem mandou você dar o ...?’, um cara me disse uma vez. Aquilo tudo me abalava muito. Estava em tratamento psiquiátrico, tomava remédios fortíssimos para depressão e ansiedade. Foram oito anos como soldado, nunca fui promovido. E fazia trabalho pesado, faxina, até pedra eu tive que quebrar. E eles só diziam para mim: ‘Mas foi você que quis voltar’”, lembra.
Ruggery conseguiu, finalmente, em 2017, ser reformado como 3º Sargento pela Aeronáutica. A dedicação aos esportes de alta intensidade o fez conseguir vencer a depressão e deixar os remédios psiquiátricos de lado. Caminhando para sua segunda graduação na faculdade, ele hoje trabalha como educador social voluntário na área de HIV e AIDS. Os momentos de tristeza existem, claro. Mas não são limitadores. “Eu me superei; hoje não tenho medo, não tenho vergonha. A AIDS não pode ser a minha identidade, eu não sou o garoto da AIDS. Eu sou o que eu construí: sou militar, sou atleta, sou professor, não sou a doença. A doença é algo que eu controlo, não é ela que me controla”, ensina. “Hoje, a cara da AIDS é viver, é ser livre, é ser você mesmo”.
Conheça mais o Ruggery: @ruggerygonzaga (Instragram)